O suicida

Autor: Nelson Rodrigues

Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre, em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o nosso suicídio,admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio. O sujeito que se mata dá-nosa impressão de que se apropriou indebitamente de um ato, de um impulso, de um desespero, que deviam ser nossos. Vejam Maneco, o ex-craque do América, que bebeu formicida na casa de um parente.

Outros jogadores já morreram: - de doença, de acidente e, até, de fome. Mas o suicida não é um morto qualquer. Tem uma morte única, inconfundível, inalienável. Ou por outra: - não morreu, propriamente, matou-se. E, com o exemplo de Maneco, verificamos, ainda uma vez,que o suicídio tece um parentesco sutil, mas irresistível, entre nós e o defunto. Quando os jornais e as rádios anunciaram o fato, cada leitor e cada ouvinte sentiu-se um crispado irmão de Maneco. Eu soube na rua. Um amigo meu,que vinha em sentido contrário, atirou-me na cara a notícia: -"suicidou-se o Maneco!".

Era atualmente um simples técnico de juvenil, no América. Fora escorraçado dos jornais. Ninguém falava nele e só uns poucos lembravam-se de sua passagem pelo futebol. E, no entanto, raríssimos craques tiveram uma carreira tão fulgurante, embora breve, muito breve. Houve um momento em que aparecia todos os dias, no berro gráfico das manchetes. Bastadizer o seguinte: - chegou a suplantar, a barrar no escrete o grande Ademir. E numa Segunda-feira, após um Brasil x Argentina, foi demais: - seu nome encheu todas as bocas como saliva. E que fez ele para por assim histérica uma cidade? Apenas isso: - três ou quatro jogadas de antologia. O futebol de Maneco era realmente enfeitado, pulado, colorido como um índio de carnaval. Mas essa glória, que era alucinante, foi, também, muito rápida.

E, súbito, o craque começou a perceber que a multidão já lhe negava o aplauso. Se, ao menos, fosse vaiado! Mas nem isso, nem isso! Por fim, quando se falava nele, já faziam confusão:-"Maneca, do Vasco?". Não há ninguém mais desconhecido, ninguém mais obscuro, ninguém mais anônimo do que o sujeito que foi célebre um dia. Quanto à imprensa, ao rádio, à televisão, viviam esfregando na nossa cara outro Maneco mais atual: -Didi. Por último, veio a história dos quarenta contos, que não pôde pagar. O meu confrade Carlos Renato disse bem: - numa terra em que todos devem, Maneco morreu de paixão por uma dívida.

Cabe nessa crônica o raciocínio: - o ex-craque matou-se por causa de quarenta contos. E assim sendo todos os que, na face da terra, aqui ou alhures, dispõe de uma importância igual ou maior, estão implicados no episódio. Por outro lado é um erro considerar-se o suicídio como tal. Na verdade, ele representa algo mais: - é um assassinato. Examinemos uma relação, ainda que sumária, dos que influíram no seu desespero: - primeiro, os que tinham os quarenta contos ou mais; e, depois,todos nós e cada um de nós. Sim, amigos: todos os que lhe negamos o aplauso, que lhe viramos as costas, que o confundimos com Maneca do Vasco, que o esquecemos, somos co-assassinos Maneco.

Posted by criptopage