Pato com azeitonas

Péricles acorda. Percebe, surpreso e com grande alívio, que está coberto até o queixo. Ainda é madrugadinha, e faz um pouco de frio. Péricles não acorda como nos outros dias; está calmo e, a princípio, não se dá conta da estranha tranqüilidade que lhe toma o corpo. Péricles olha para o teto branco, e quase fica alegre; mas logo se preocupa. Queria não pensar, mas pensa - e a primeira coisa que lhe vem à cabeça é o funil. Fica um pouco confuso: embora esteja ainda um pouco sonolento, percebe que alguma coisa está errada. Seu funil veio, como sempre, mas ele se mantém coberto. O funil é o mesmo, mas falta todo resto. Não posso fechar os olhos, pensa. Não é certo, as coisas não estão como deviam ser. Concentra-se em manter-se imóvel, pelo menos até que consiga uma explicação satisfatória. Seu funil (relembra) é uma coisa invertida, muito grande e polida, cinzenta,instável e que oscila muito. Esse aí é o seu funil, ele sabe, mas está tão parado, tão... diferente!

Tenta entender a contradição, disfarça, finge que não dá bola para o funil. Entrecerra os olhos, mas (como se não soubesse!) o funil não irá embora, vai crescer cada vez mais até ocultar tudo e até se parecer com uma parede muito grande e opaca, como se ele fosse cego - mas não já. Péricles está preocupado, mas ainda mantém o controle. No fundo, não tem muitas ilusões: sabe que as coisas irão se encaixar mais para o fim da madrugada, e tudo ficará com a nitidez habitual, coisa com coisa. Sabe que, no fim, seu corpo irá se expandir, redondo, liso e pesado. Ele sabe.

Péricles não está ainda completamente acordado. (Nessa semana, fez muito calor durante os dias, um calor úmido e chato, mas as noites não, de noite tem esfriado bastante). Péricles vive agora uma sensação maravilhosa de repouso e tranqüilidade. Está sequinho, e não sente a remela que o envergonha um pouco, ele que sempre acorda antes de Lu. Seus sonhos não vieram essa noite, não houve nenhum sobressalto,e nem as dores da bexiga. Não sente nem uma só gota de suor no corpo. O lençol está seco, friozinho. Desvia os olhos para a mulher. Lucrécia dorme, voltada para Péricles. O braço direito, sempre dobrado por baixo da cabeça. A posição de lado, os joelhos apenas percebidos sob a colcha, num ângulo suave. O braço esquerdo, descoberto, faz um grande arco na interseção entre os seios e a barriga, como sempre. Volta a olhar para o teto, mas só vê para o ventilador parado - o funil se foi. Péricles permanece imóvel, um pouco surpreso. Os olhos, agora bem abertos, se fixam no ventilador e nas três lâmpadas que imitam uma luminária antiga. Tenta organizar um pouco seu raciocínio; esse desaparecimento do funil nunca tinha acontecido antes - e isso incomoda, mas também o alegra e enche de coragem. Quer analisar com bastante calma todos os pontos, um por um. É importante algum esquema, alguma coisa que possa enganar para sempre o funil. Dessa vez, ele não voltará! Para disfarçar, tenta pensar em outra coisa. Pensa em frutas, nas frutas brasileiras, suculentas e coloridas: a jaca verde-amarela, o caqui, a manga, mangas de todas as cores e tamanhos. Tenta fazer um inventário de todos os tipos de manga que já comeu, espada, carlotinha, as enormes importadas, manga-boi, etc.; o abacaxi, a banana, a fruta-de-conde, pitanga, sapoti. Quer continuar assim, um pouco mais e irá enganar de vez o funil. Sente alguma dificuldade em lembrar de novas frutas... limão, ameixa, laranja, carambola, amora, melão, melancia, mamão... Mas logo que pensou em mamão, percebeu o erro: a forma da fruta! Imediatamente veio à sua cabeça, varrendo toda a concentração, o pato - o pato assado com azeitonas.

Essa mudança não o assusta muito, porque, afinal de contas, isso é mais regular, mais normal, mais de acordo como que já conhece e lida, dia após dia. Logo percebe que essa é a nova deixa: deve, então, entrar mais uma vez no outro joguinho, o de todas as madrugadas...Fará sua parte, o que o funil espera dele - volta muitos anos atrás, volta pro Andaraí, para a casa de vila onde nasceu, no quintal da casa antiga. Deve recriar o prato parte por parte, nenhum ingrediente deixado de fora, nos seus mínimos detalhes; seguirá a receita mentalizada, conhecida sua de muitos e muitos anos, desde a meninice. A primeira vez, o cuidado com as instruções da mãe, ele já é um homem... A ave retirada do cercado, gorda, agarrada, que se debate muito, e assusta Péricles com seu grasnado angustiante. A faca afiada, passada às suas mãos com as devidas instruções. A última orientação da mãe, em voz baixa, mas perfeitamente entendida. A morte da ave (o lado da faca que bate no pescoço depenado, para chamar o sangue, na parte da frente do pescoço, o pescoço avermelhado e crespo, o pescoço vermelho, e a faca, afiada, a faca que é um perigo, cuidado Péricles, o pescoço, um piru, um caralho, o pescoço do pato, o corte num só golpe, a medula que parece um macarrão saindo do pescoço caralho vermelho de sangue vivo, sangue que espirrae molha toda a sua pequena mão, a que empunha a faca, a faca afiada, e que lhe respinga esporra também o rosto, do lado da boca, e a narina...

O sangue, colhido na panelinha sem cabo, já com o vinagre branco e um pouquinho de limão espremido, a escaldadura do pato ainda se debatendo, no canto do quintal, na lata quadrada de 20 quilos, de banha, cheia de água fervente na fogueira de lenha, o depenamento da ave, o esquartejamento sem jeito, começando pela decapitação e pela amputação das patas, o corte atravessado da barriga do pato, o cheiro o quentinho o fedor a separação dos miúdos para o recheio, moela fígado a banha que parece crescer ao ser cortada, as tripas quentinhas cobrinhas postas à parte cuidado com o felo verdinho redondinho, os restos no caminhãozinho de madeira... Lembra do tanque de cimento-armado onde lavou as mãos e o rosto, a água primeiro vermelha, depois rosada... Então, a cozinha, o descaroçamento das azeitonas macias (sempre devem ser pretas!), uma a uma, a química dos ingredientes e temperos fortes, o sal e o louro, a pimenta moída na hora, e toda a liturgia culinária no grande fogão de ferro, a fritura das partes, a banha quente de barulhar, o sangue aferventado na frigideira de ferro, as misturas em fogo baixo, os cheiros... Péricles se aferra minuciosamente aos detalhes mais pequenos, que isso pode salvá-lo, o destino dos restos, o enterro das peles, das patas, vísceras, menos a cabeça, roubada por seu cão Nero. E ao mesmo tempo, o preparo final, os detalhes de última hora, o ritual da unção do pato com o molho engordurado no forno grande, a retirada do pato com sua travessa de louça branca (oval, alta, de flores vermelhas, folhas verdes-claras), a ave assada e luzidia, entupida por trás com o recheio, uma farofa com os miúdos, banana, os preparativos finais, e o caminho silencioso pelo corredor comprido, da cozinha até a sala de jantar e até a mesa coberta com a toalha de renda branca, flores pequenas também brancas, a terrina de arroz e os legumes, o pão cortado em fatias - mesa posta para três pessoas. Mas lembra também da cabeça roída do pato, a gosma, tira da boca de Nero ele vai engasgar, a gosma, o rosnado e a fuga... Não deixará, dessa vez Péricles não deixará que a coisa fuja do seu controle. Não esquecerá de nada, nada...

Fecha os olhos com lentidão: primeiro o direito, o mais longe da mulher. Nada acontece. Ainda vê o pato, sente seu cheiro, sente seu calor, o calor do sangue na mão pequenina, e na cara. Pensa em fechar o outro olho rapidamente, mas não se decide. Percebe, mais que imagina, a aproximação dos dois vultos, os que irão comer, com ele, o pato. Agora, já quase pode ver os rostos - um homem e uma mulher. Mas nunca consegue saber quem são (sempre atrás do funil!). Acha que são os pais, mas não tem certeza. Está fazendo frio e, nesse momento, sente que a coisa pode desandar. Então, fecha com força o outro olho. Na mesma hora, a narina começa a tremer,e nada mais se mexe. O mundo parece ter parado. Os vultos desapareceram, e o pato também, a mesa, as cadeiras, tudo. Não percebe mais nem mesmo o funil. Não sente nada; apenas aquele leve bater da cartilagem do nariz. O mundo podia acabar, trombetas tocando, tudo desabando, mas a cartilagem, não! Ela bateria até só sobrar ela... Mas depois de algum tempo, num movimento automático, sua mão livre (a direita) deixa a cama e se move lentamente, como se estivesse hipnotizada pelo adejar da narina. A mão toca o peito nu e desliza mansamente, dissimulada, por baixo das cobertas: tenta chegar até o movimento da narina. Péricles tentará enganar sua narina. A mão chega ao queixo áspero, e o dedo indicador, o mais perto da boca, é abandonado vagarosamente pelos outros. O indicador então se eleva, milímetro a milímetro, até o lábio inferior esquerdo. O movimento suave, quase imperceptível, toma, contudo, toda sua atenção. O dedo avanác até seu destino. Sente o dedo úmido. (Aquilo está lá, aquilo está presente. O começo perpétuo de seus pesadelos, desde a meninice, o filete prenunciador, a gosma do sangue, está lá. Sempre no canto, sempre no canto esquerdo, sempre saindo do mesmo orifício, a narina levemente adejante, quase como o vibrar de um diapasão.) O filete - Péricles tem absoluta certeza - passa ao lado do canto da boca - nunca pára dentro da boca -e desaparece inexplicavelmente na pele por barbear - sem acumular - sem gotejamento, sem calor. Sempre o mesmo sinal premonitório, idiota e monótono do seu mergulho, da catástrofe que virá, e do afogamento híbrido, vermelho-vivo, branco-pérola, entre os vultos (seus pais?) e as luzes mortiças.

Hirto, Péricles aperta ainda mais seus olhos, até surgirem raios e pontos luminosos por trás das pálpebras (Dizem que são restos de células, boiando nas lágrimas, os pontinhos e os raios, ou então proteína perdida pelo olho). Desloca o polegar e, junto com o indicador, pressiona suavemente as narinas e respira (quase um sussurro, quase sem hálito) pela boca semicerrada. O esperado inchaço não acontece. Péricles reza para que Lu esteja realmente dormindo. Ainda não está na sua hora, ela deve estar dormindo... Descerra cuidadosamente o olho esquerdo. Sua pupila descreve um lento arco na direção da mulher. Disfarçado, olha para o braço exposto de Lu, mergulhado na semi-obscuridade, sob o travesseiro. Fingindo distração, repara na algema, e na corrente que passa por baixo dos seios de Lu e se perde nas dobras da coberta. O brilho do aço ainda não sobressai, mas já revela a dureza do metal. Retorna o olhar para o lustre, com o outro olho ainda cerrado (sua tábua de salvação). Cuidadosamente, afasta o indicador, só alguns milímetros. Então, com rapidez, retorna o dedo à posição anterior. O outro braço dói, as pernas dóem, estão dormentes; as veias, as veiazinhas, mas Péricles não ousa mudar de posição. Se a mulher acordasse, o funil retornaria - isso é certo. Se houvesse qualquer movimento, o funil voltaria, e dessa vez trazendo com ele a agonia tão perfurante e implacável, a terra solta, o enterro no sangue quente e na porra e no entulho, a dormência cinzenta, as luzes amortecidas, o garrote da algema de aço, o repuxar e o corte serrilhado e o decepar, a mão tornada à vida, e acusadora, e a cabeça do pato para fora da tigela, gosmenta, sempre na mesma direção, sempre para mim, com seu bico podre, entreaberto e meio triturado.

Agora, todo o seu lado dói, mas ele força o pensamento para o filete. Pensa sentir no indicador uma pressão muito sutil, muito suave. A narina esquerda parece feita de pano, flexível, fria, porosa, grumosa. Linho. A respiração fica um pouco mais difícil, e Péricles sente um desejo incontrolável de se rebelar, de tocar com a outra mão aquela veia, a veiazinha na dobra detrás do joelho, a que dói, e dói sempre... Sabe, naturalmente, que isso é impossível. Para se distrair, presta atenção à mão, ao indicador ao polegar em seu rosto. Retarda um pouco a respiração pela boca; já está um pouco mais senhor de si. Seria bom, agora, se pudesse disfarçar novamente com o jogo das frutas, mas sabe que, nesse momento, não iria se lembrar de nenhuma. Também seria bom confirmar a remela, se seus olhos não estão mesmo com a remela. Isso, entretanto, também não é possível; teria que usar a outra mão. Nesse momento, pressente, mais que percebe, a umidade quente entre a palma da mão e o queixo, a leve coceira. Mas Péricles não desiste, não pode se dar a esse luxo. Não afasta os dedos. A pressão aumenta, a narina se eleva, mas ele não cede: a liberação da pressão é a chave-mestra para o escorrer da gosma, o alagar da cama, o mijo, a merda e o suor, a maré vermelha nos olhos, o acordar da mulher, são as luzes mortiças e esverdeadas, é o olhar mal-humorado a princípio, o olho sempre límpido, sempre desfocado, e um pouco vesgo, e acusador, e condenatório, e aterrador da sua juíza e executora e salvadora. É o apequenamento: de novo o virar criança aterrorizada pelo assassinato cometido, a violação das mãozinhas e do rosto, sangue no canto da boca e no nariz, é o ventre dela espraiando-se e crescendo em camadas de banha que lhe comprimem a cabeça, o caminhãozinho basculante cheio de terra e penas e tripas e excremento e caroços para enterrar no fundo do quintal, milhares de caroços pretos de azeitona, o achar da cabeça abandonada pelo cão, é Lu despejando tudo no seu funil cinzento, sempre gigantesco, sempre invertido, girando suavemente... É o impalamento, que o faz inchar e crescer, e crescer mais, e pesar um peso de terra e pedra, e que o faz afundar como um cano de chumbo, sempre para baixo, cama adentro, pelo chão de tacos e concreto violado, por onze andares, até a cisterna obscura, até os pântanos miasmáticos e escaldantes e verdes e negros de carvão, e para os animais soturnos e misteriosos de sua cisterna, nos subterrâneos mais ocultos e aterrorizadores do seu edifício.

Péricles teme por seu salvamento. Algo está errado, pensa. Ele está coberto, e sequinho, e o funil não apareceu mais. Já não tem certeza de seu salvamento. (Péricles é sempre salvo, no último momento, pelo braço elástico da mulher. Ele nunca entendeu, em meio ao seu desespero, em suas quedas verticais, como o braço esquerdo de Lu pode esticar tanto, onze andares e mais a cisterna!) Quase por acaso, lembra-se de não ter visto, na mesa posta, a faca de pão, o instrumento da sua absolvição. Com ela, Lu decepa sempre a mão algemada quando já se lhe queimam os pulmões, e quando sua pele já se rompeu, aqui e ali, lustrosa e retesada, pela ação do impalamento com os restos da sua infância. A faca que o mutila, para que possa atravessar a ponte para o dia seguinte. Não sabe mais o que pensar. Tem medo, muito medo. Queria ter visto a faca. Mas, engraçado, sente-se mais forte. Sente que poderia até voar! (Raciocina com muito cuidado: estou coberto. O funil não está no meu cu, a narina não explodiu em pedaços, acordando a Lu, e não vi nem sinal da faca de pão). Além disso, a umidade na mão mal pode ser chamada de suor... Prepara-se então para o grande movimento, o salto que o vai libertar para sempre do seu pesadelo. Vai levantar da cama. Vai levantar da cama vai levantar da cama, sente que vai se libertar de uma vez por todas. A algema é imaginação sua, tudo é pura imaginação, um sonho mau, um pesadelo! A veia da perna martela, incessantemente. Inclina um pouco o tronco, baixa a mão direita muito vagarosamente, e faz seu primeiro ruído - uma inspiração profunda e incontida. Vai tocar, com a outra mão, a veiazinha da perna.

(A coberta é repuxada. Péricles sente um calafrio e, simultaneamente, um leve ruído de metal contra metal. Fora do seu controle, como se não fizessem mais parte do seu corpo, a mão e o braço esquerdos se afastam rapidamente, roçando contra o forro da cama. Seu corpo se endireita na cama, e então tudo volta a se encaixar. Abre o outro olho, olha o ventilador e volta a cabeça resignado, quase agradecido, na direção da mulher. Olha para Lucrécia. Na penumbra, Lu está séria, compenetrada, um pouco austera, mas com um ar quase, quase carinhoso. De olhos abertos, fixos. Há quanto tempo, Péricles se pergunta?)

Este conto é do site de Fernando Naxcimento.

Posted by criptopage