Carandiru
Era um muro comum, se bem que mais alto que o normal. Devia ter uns três metros de altura, talvez quatro. Dominava toda a paisagem. Ainda era muito cedo, e o cume estava ainda um pouco brumoso, mas à distância, parecia estar bem construído: surgia no lugar em que devia estar a amendoeira, bem a prumo, com algumas vigas de cimento espaçadas entre os tijolos, acompanhando exatamente a linha da cumeeira do morro, em paralelo com nossa varanda. O muro avançava cinqüenta, cem metros, e abruptamente voltava-se numa curva fechada para a parte traseira do morro, a que não podia ser vista por nós. Certamente a amendoeira devia ter sido cortada. Mesmo de tão longe, sabíamos que a árvore devia superar o muro em mais de cinco metros. Não poderia, de modo algum, estar oculta pelo muro. Tinha sido derrubada. Jane, triste por sua árvore predileta. Ficamos um bom tempo calados. Eu não conseguia imaginar um objetivo para o muro. Sua construção demandaria toda uma preparação anterior: a areia, o saibro, o cimento, tábuas, tijolos, o ferro das colunas, a brita, e até a água, tudo teria que ser levado morro acima, até o cume. Sem contar com o movimento dos operários. Mas não tínhamos notado nenhum movimento na tarde anterior. Sugeri que os homens teriam levado as coisas todas pelo lado oculto do morro, mas Jane conhecia o outro lado, era uma pedreira abandonada. O cume terminava logo após a nossa linha de visão, num vazio de granito de muitos metros; por ali não poderiam ter chegado. O muro atraía nossos olhares. Sua presença era inconsistente demais! Disse a Jane que gostaria de saber como reagiriam os moradores do morro ao muro; mas não havia qualquer movimento na parte habitada. Estranhamente, notei que não havia nem mesmo o pouco movimento existente naquela hora, só silêncio: os cães, as galinhas e os patos, as crianças da escolinha, mais madrugadoras, os primeiros trabalhadores, as mulheres que trabalhavam fora, nada percebíamos. Era como se o morro estivesse vazio. As janelas e portas dos barracos estavam fechadas. Isto era estranhíssimo, disse Jane: mesmo a esta hora da manhã, o morro fervia de movimento, ruídos, gente e bichos e a criançada... Ficamos procurando por algum sinal, algum indício; em vão. Repentinamente, mesmo os ruídos comuns da rua, a esta hora já tão movimentada com os carros que iam para a ponte, não escutávamos. Nossos olhos retornaram, morro acima, para o muro. Ninguém, nada mudara. Jane, pedi, ligue o rádio. Absurdamente, esperava alguma indicação, no noticiário, que explicasse o que estava ocorrendo. Mas nada de especial tinha ocorrido na cidade: a temperatura, os aeroportos, as transgressões usuais, as mesmas promessas de políticos, uma invasão de presídio em São Paulo, o mesmo de sempre. Vamos tomar café, pedi. Jane começou a contar o filme que vira no dia anterior, do Bergman, o filme estava cortado, uma merda, uma história de três irmãs, uma com câncer, a Agnes, mas a cor era linda. Tak, tak, tak, barulho de fita, não podia acontecer isto, a Agnes estava já muito doente, e cortaram a parte da leitura do diário, ela gritava muito pela Ana. Meus olhos haviam se voltado para o muro. Jane, ao fundo: a Karen era muito seca, e elas estavam com um relacionamento muito difícil, a Maria tinha um caso com o...
Um pouco maior. Estava um pouco maior. E um pouco fora de prumo, tombado suavemente para o lado das casas. Embaixo, o mesmo silêncio. (se auto-pune com um caco de vidro, na vagina, e o marido olhando... cortaram demais, taí, cortaram muito o filme). O rádio: Carandiru, 110 mortos, corredor polonês, a polícia militar invadiu... Desviei os olhos para Jane, desliguei o rádio. Vamos sair um pouco, vamos tomar café na padaria da esquina, lá tu me conta o filme, tá bem? Mas meus pés pareciam chumbo, senti um calor estranho nas pernas, um calor de queimação. Olhei mais uma vez... Vamos, disse Jane, vamos para a rua. Vamos ver as pessoas lá na rua. Temos ainda muita coisa para fazer hoje.
FINIS
Caminho fácil, macio, frouxo, na superficie, intimorato. Caminho felino, na noite-buraco, até tua rua. A luz que brota de tua janela é meu sinal, é teu cartão; me deixa surdo aos que passeiam despudorados na tua rua. Meu paradeiro, o velho poste, é solidário com meu passar. Face banhada por tua luz, também estático, é lua plena, meu velho poste, teu guardião enciumado.
Este conto está no site de Fernando Naxcimento.